domingo, 6 de março de 2011

Capítulo 1

-Se teu avô te visse agora, certamente morreria. - caçoou a cozinheira gorda, de dentes amarelos. Ela era enorme, com banhas para todo o lado; mas mesmo assim, usava um decote ousado e tentava fazer pose. Seu cabelo preto ensebado saia de baixo do lenço da sua cabeça em grandes punhados. Tosco não sabia porquê ela usava aquele lenço então, uma vez que não servia para prender cabelo nenhum.
- Meu avô já morreu, Susana. Não precisa ficar me lembrando.
- Então pare de choramingar, pequeno principe, e leve logo essa bandeja para o salão!
Tosco resmungou qualquer coisa para ela - nem ele mesmo entendeu - e rumou para o salão de jantar equilibrando uma bandeja que continha uma jarra pesada de vinho e uma taça de ouro. Realmente, ela tinha razão. O que seu avô, o grande rei Dimas, faria ao ver seu neto servindo de copeiro para um homem que agora posava de rei, mas que não tinha um pingo de sangue real nas veias? Era ultrajante. Aquele homem tinha deixado seu pai morrer na prisão, mandado sua mãe para o convento e sua irmã sabe-se lá para onde - e, a ele, tinha guardado o melhor: a servidão. Viver como um simples copeiro onde em outros tempos poderia ter sido a cabeça...mas agora era a cauda. Seria melhor a morte, se o desejo de vingança não o deixasse descansar. Mas Tires era esperto...Tosco não sabia até onde, mas assim que chegasse a idade adulta - 18 anos - e tivesse direito de ser ouvido, ele receberia o que merecia. Mas, por enquanto, o rei esperava a taça de vinho.
- Aí está o nosso real copeiro! Achei que ainda estava amassando as uvas!
Tires riu gostoso. Os demais lordes da grande mesa de jantar do salão acompanharam a risada. Tosco percebeu que apenas riam para agradá-lo - o medo estava estampado em seus olhos. Ninguém estava disposto a trocar de lugar com ele.Tosco era o exemplo. Se o proprio principe servia a sua taça, qual seria o lorde que arriscaria enfrentá-lo? Ninguém. Tires estava num posto totalmente acima de qualquer um que tivesse sangue azul naquele cômodo.
Tosco o serviu rapidamente. O rei olhou para dentro da taça desconfiado.
- Espera que eu beba tão rápido assim?
Tosco sabia que era uma maneira de não arriscar ser envenenado por um herdeiro legitimo ao assento que ocupava tão elegantemente. O copeiro deu um gole rápido. O monarca suspirou e, depois de limpar com um guardanapo a borda da taça, a ergueu num saúde! e a entornou. Olhou para Tosco com uma sombrancelha erguida, o sinal de que ele já não era mais bem-vindo alí.
O principe fez uma mesura e voltou para a cozinha com a bandeja debaixo do braço. Tinha uma cozinha para limpar. O que mais aquele idiota iria mandar ele fazer? Qual seria a próxima ilustre humilhação que iria ter que passar, pra que aqueles lordes covardes tomassem a iniciativa de fazer qualquer coisa? Suspirou e jogou-se numa cadeira próxima. A cozinheira dizia alguma coisa sobre as panelas, e Tosco levantou-se sem ânimo algum para ir até uma grande tina com panelas sujas. Suspirou mais uma vez.
- Se teu avô te visse agora, certamente morreria.
Era a cozinheira mais uma vez. Mas, agora, a afirmação soou com tristeza. Tosco não sabia se era ela quem estava triste, ou era ele. Tentou segurar o choro, mas uma lágrima teimosa desceu por seu rosto. Enxugou-a com o ombro, torcendo para que ninguém tivesse visto. Já era velho demais para chorar. Mas no próximo ano, quando tivesse idade suficiente, não choraria nunca mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário